Desconhecida
Carlos C. acordara cedo como todos os dias e fora até a cozinha preparar seu café da manhã. Após pegar um copo de vidro do armário e encher com um pouco de suco de laranja que ele deixara previamente preparado na noite anterior como já vinha fazendo há 9 anos, ele pegou um pão francês e cortou-o em dois. Levantando-se foi pegar a manteiga e depois, com uma faca larga, passou a manteiga no pão recém cortado. Alternando as mordidas do pão e os goles do suco com uma precisão mecanicamente harmoniosa terminou ambos. Preparou outro pão e encheu outro copo de suco como fazia desde que tinha seus 20 anos e com a mesma cadência mecânica e harmoniosa ingeriu ambos alternadamente, começando pelo pão e terminando pelo suco. Dois pães por dia, por trezentos e sessenta e cinco dias durante nove anos totalizando seis mil quinhentos e setenta.
Após o café, C. tirou o pijama e colocou a roupa de trabalho que já deixara perfeitamente alinhada ao pé da cama assim como fazia desde que começara a trabalhar naquela empresa de apólices de seguros. Vestiu a camisa branca e impecável de sempre, as calças engomadas e perfeitas, as meias brancas que C. sempre fazia questão de puxar até a metade de suas canelas e o paletó preto que ele vestia sempre, não importando o clima.
Foi até a porta e lá pegou seus últimos objetos pessoais, uma caneta que ele ganhara de alguém há muito tempo e que ele não se lembrava bem de quem, sua carteira e as chaves da porta. Com posse das chaves ele encaixou-as em suas fechaduras respectivas, uma de cada vez sendo que após esse procedimento girava a chave respectiva duas vezes para a direita.
Abriu a porta de casa e começou a descer dois lances de escada até que chegou à porta de seu condomínio. Não havia ninguém no hall, pensou que deveria ser muito cedo.
Começou a caminhar rumo ao trabalho, não ficava tão longe de sua casa, apenas uns seis quarteirões, era cedo e não havia porque ter pressa, nunca chegara atrasado daquela forma e ele sabia que não chegaria. Alem disso não havia ninguém na rua para atrapalhar, olhava sua rua que era completamente reta por mais quilômetros do que ele jamais ousara pensar e nenhuma figura se movia, nenhum corpo a cortava correndo atrasado para um compromisso, nenhuma briga nas casas ao redor, as pessoas deveriam estar dormindo ele pensou, há muito tempo não ouvia o casal do prédio 7 da rua R. despedindo-se ao pé da escada, com as crianças atrás. Acho que conhecia aquelas crianças, ele pensou mas logo desistiu de lembrar, não daria em nada.
Continuou a caminhar atravessando três dos seis quarteirões quando parou no semáforo de pedestres. Nenhum carro cruzava a grande avenida em nenhum sentido mas isso não era bom motivo para quebrar uma regra tão banal.
Mal havia dado dez passos do outro lado da avenida quando fui interpelado por Vitor M., meu amigo chegou exibindo seu tradicional sorriso introspectivo me estendendo a mão enquanto caminhava ao meu lado. Apertei sua mão e perguntei como andava. Respondeu que estava tudo bem, que as coisas corriam como o planejado, nesse momento ele realçou seu sorriso sem ainda mostrar os dentes. Disse que era maravilhoso e dei um riso leve. Ele devolveu-me a mesma pergunta e eu respondi com sinceridade. “Entendo” ele disse e então parou e colocou o pé em um banco do parque para amarrar seus cadarços soltos.
Como Vitor trabalhava numa empresa de urbanismo no fim da próxima rua depois da avenida ele sempre cortava caminho pelo parque. Era um local agradável, eu mesmo sempre vinha por aqui mesmo tendo de voltar para a calçada no final. Muitos conhecidos paravam para olhar a estátua de bronze de algum general em seu cavalo, para conversar sobre as novidades antes que cada um se separasse para ir para seus trabalhos.
Continuamos a andar e, perto da praça no centro do parque, pedi para sentar e descansar. Ele puxou algum assunto que não me lembro, não dei muita atenção a ele. Observava uma bela garota, minha bela desconhecida. Tinha mãos tão delicadas, sentava com as pernas cruzadas com uma elegância acima da realeza. Sempre estava no mesmo banco, olhando a estatua ou escutando os pássaros.
Levantamo-nos e continuamos nosso caminho, passamos por ela e nesse momento meu coração acelerou, a primeira vez que tomava conta de sua presença naquele dia. Passamos por ela e a deixamos para traz, a sensação de mal estar ficou com ela. Cruzamos no caminho com Samael V., homem forte e queixudo que trabalhava de vendedor na loja Hemmils&Connels. V. cumprimentou-me afavelmente com um abraço forte que quase me fez perder o equilíbrio, com um sorriso debaixo de seu grande bigode perguntou da vida e da existência e respondi o mesmo que a M., Samael alargou o sorriso e assentiu. “Tenho de ir, estou atrasado para abrir a loja”, dissemos que também tínhamos de ir, me deu um tapinha muito forte nas costas e saiu andando, para Victor ele mandou um aceno com uma declaração de algo como “Até mais Vit!”
Chegávamos ao fim do parque, Vitor, com seu aspecto magro e abatido olhou longamente a grande distância entre ele e seu escritório antes de estender-me novamente a mão para poder partir.
Três quarteirões depois estava na porta do escritório. Atravessando o caminho do pátio do edifício em forma de U em que trabalhava C. abriu a porta e olhou a cadeira vazia do vigia que cuidava da porta e da freqüência dos empregados.
Marcou a presença no cartão e dirigiu-se a sua respectiva escrivaninha. Ninguém no caminho, ninguém nos corredores até chegar à porta de madeira barata de seu escritório.
Carlos trabalhava numa pequena sala que ele dividia com outra pessoa, mas seu companheiro de trabalho não estava ali, atrasara-se provavelmente ele pensou.
Deu uma rápida olhada nos relatórios do companheiro ao passar pela mesa dele. O primeiro datava de ontem assim como a sua própria pilha de relatórios.
Tirou o paletó e, como sempre fazia, colocou-o em sua cadeira. Tirou a carteira e as chaves e colocou-as no lugar de sempre. Pegou depois sua caneta e se arrumou para começar as tarefas do dia.
O trabalho de C. era o de aprovar ou não o pedido de apólices, um trabalho levemente angustiante mas que após um tempo perde qualquer efeito sobre a alma humana, acostuma-se.
Particularmente naquele dia ele teria de julgar o pedido de uma viúva que perdeu o marido em um acidente numa construção. Uma das vigas que estava sendo levada para o alto soltou-se e caiu sobre a vitima. Seria um processo até que bem simples visto que havia muitas testemunhas e o relatório era, portanto, muito detalhado. Carlos soube, por exemplo que o responsável foi um dos funcionários que colocou uma porca mas não a rosqueou devidamente, soube também que haviam mais funcionários embaixo da viga e que um deles foi empurrado para fora da rota da viga pela vitima. O ponto que ele julgou mais inútil naquele relatório tão cansativamente longo foi o depoimento por extenso de um dos funcionários que relatou em três momentos que os filhos da vitima tinham passado por ali a menos de meia hora e cumprimentado o pai.
Havia ainda um relatório sobre o referido acidente na construtora, um acidente de carro com quatro vitimas e a queda de um pintor que quebrou uma das pernas no acidente, entre outros.
Carlos leu a todos eles e aprovou o alguns pedidos e negou outros como o do acidente de carro devido ao fato de que das quatro vitimas apenas uma estava efetivamente segurada mas esta não usava o cinto na ocasião do acidente.
Quando terminou o relatório faltavam apenas cerca de quinze minutos até a hora de sair. Levou seus relatórios até a mesa do chefe e lá os deixou visto que ele não estava, deveria ter saído, ou não, não sabia, talvez tivesse se atrasado também.
Tomou um gole de café que ficava na mesa no corredor, estava quente mas fraco demais, mesmo assim não reclamou.
Voltando ao escritório olhou a mesa do companheiro, ainda não chegara, nunca veio pelo que podia se lembrar, ninguém nunca aparecia na verdade. Isso é problema do chefe ele pensou enquanto vestia o paletó e colocava novamente nos bolsos a carteira, as chaves. Antes de sair olhou para baixo e viu a caneta no lixo, a carga acabara e era inútil, pensou em porque estava observando mas logo percebeu que não chegaria a conclusão e foi em direção à porta.
Passou pelos corredores iluminados pela fraca luz ao fim do expediente, lá fora uma escuridão sufocante era contida pelas luzes da rua. O vigia não estava e só o seu cartão encontrava-se pendurado.
A rua era tão reta e tão longa que as luzes pareciam unir-se no final, era como percorrer uma montanha com uma saída em cada extremidade, uma caverna alta fria e iluminada por postes com grandes lâmpadas de 100 W.
Algumas pessoas reuniam-se na praça no centro do parque. Eu andava com o rosto baixo, abatido por algo que eu desconhecia. Levantava a face atraído por alguns sons que me pareciam estranhos, por risos ou gritos de alegria ou fúria. Sentou então no mesmo banco em que sentara hoje de manhã.
Coloquei a mão no bolso do peito da camisa mas nada senti entre minha mão e meu peito alem do tecido leve. Aquilo me afetou de uma maneira que eu ainda não compreendo, apenas percebeu que pela segunda vez naquele dia sentiu seu coração. A saída foi afastar a mão do bolso.
Fiquei sentado ali mais um pouco de tempo observando o banco em que ela sentara, fiquei cerca de quatro minutos até que C. decidiu levantar-se e caminhando rapidamente aproximou-se do banco.
Ajoelhei-me e coloquei ambas as mãos naquela laje de concreto, senti que ele tinha algo de importante para mim que eu desconhecia, talvez fosse por causa da garota, talvez a caneta, talvez as crianças do prédio 7, talvez... não... ou será que sim?
Por um rápido momento todas essas duvidas foram assopradas por um pensamento, uma decisão que me animou como nunca, amanha eu falaria com ela, me aproximaria desse banco e diria algo, um oi, um ola, pegaria o telefone dela, deixaria essa solidão, essa clausura, todos podem ser felizes quando se tem um braço para nos acompanhar num passeio... sim, amanha logo na manha resolveria todos os dilemas, esse banco continha as respostas que anseio e ela tinha a chave para revelar esses segredos... amanhã!
Caminhei pelo parque, saia dele diferente de como entrei, saia com a cabeça alta apreciando o efeito das luzes nas folhas.
No caminho encontrei novamente Samael, mas agora ele vinha acompanhado de uma bela garota de cabelos ruivos, cintura fina e quadris largos. Os grandes braços de meu amigo contrastavam demais com a suavidade de sua companheira. Ao me ver estendeu o braço livre e, não sei porque, estendi um sorriso de orelha a orelha e abracei-o com uma das mãos enquanto dava tapinhas no seu ombro. Lembro de ter perguntado entre prazerosas gargalhadas o que ele fazia aqui tão tarde. Respondeu-me que estava passeando com Lenina um pouco (a moça cumprimentou-me nesse momento e eu retribuí), logo depois me perguntou o que acontecera comigo. Respondi e recebi em troca um empurrão no ombro, uma gargalhada e uma declaração semelhante a “esse é meu pequeno Carl”.
Nosso encontro não foi muito alem disso, logo nos desvencilhamos um do outro, queria ir logo para casa, mal podia esperar o dia seguinte e tenho certeza que Samael também queria chegar em casa.
Carlos parou no semáforo. Nenhum carro cruzava a grande avenida em nenhum sentido, mas isso não era bom motivo para quebrar uma regra tão banal.
Caminhou três quarteirões até que finalmente chegou a porta de sua casa. Subiu os dois lances de escada, tirou as chaves do bolso e usou-as para destrancar a porta de casa. Após essa operação envolveu com a mão a maçaneta de latão e abriu vagarosamente a porta.
Na sala tirou a carteira e colocou as chaves na mesa. Sentiu falta de algo, lembrou da caneta e suspirou.
C. foi para o quarto e despiu-se, colocou seu paletó e as calças no pé da cama junto com uma camisa limpa. No banheiro, lavou-se e foi para a cozinha cuidar do suco. Tirou a água da geladeira, as laranjas da cesta e preparou tudo.
Carlos levou o lixo para fora e trancou a porta, foi para seu quarto e deitou-se.
Na manhã seguinte Carlos C. acordara cedo como todos os dias e fora até a cozinha preparar seu café da manha. Após pegar um copo de vidro do armário e encher com um pouco de suco de laranja que ele deixara previamente preparado na noite anterior ele pegou um pão francês e cortou-o em dois. Levantando-se foi pegar a manteiga e depois, com uma faca larga, passou a manteiga no pão recém cortado. Alternando as mordidas do pão e os goles do suco com uma precisão mecanicamente harmoniosa terminou ambos. Preparou outro pão e encheu outro copo de suco e, com a mesma cadência mecânica e harmoniosa, ingeriu ambos alternadamente, começando pelo pão e terminando pelo suco.
Após o café C. tirou o pijama e colocou a roupa de trabalho que já deixara perfeitamente alinhada ao pé da cama. Vestiu o camisa branca e impecável de sempre, as calças engomadas e perfeitas, as meias brancas que C. sempre fazia questão de puxar até a metade de suas canelas e o paletó preto que ele vestia sempre, não importando o clima.
Foi até a porta e lá pegou sua carteira e as chaves da porta. Com posse das chaves ele encaixou-as em suas fechaduras respectivas, uma de cada vez sendo que após esse procedimento girava a chave respectiva duas vezes para a direita.
Abriu a porta e começou a descer dois lances de escada até que chegou à porta de seu condomínio. Não havia ninguém no hall, pensou que deveria ser muito cedo.
Seguiu pela avenida infinitamente retilínea para chegar ao seu trabalho. C. percorreu três quarteirões até chegar à grande avenida que cortava ao meio seu trajeto.
Carlos parou no semáforo. Nenhum carro cruzava a grande avenida em nenhum sentido, mas isso não era bom motivo para quebrar uma regra tão banal.
Ao atravessar a rua como sempre, C. parou para observar a nova construção que se erguia no lugar do parque, um tapume róseo ocultava todo o interior, não era mais possível ver a grande estatua de bronze que podia ser vista de longe. Uma única placa indicava que ali seria construída uma loja da Hemmils&Connels.
Carlos sentiu de repente uma angústia, deixou escapar um suspiro, um último suspiro, depois ele pensou que pelo menos não teria que ir muito longe aos sábados para fazer as compras semanais. Olhou o relógio de bolso, chegaria cedo naquele dia, mas mesmo assim se pôs a andar, não havia nada mais ali ele pensou não sabendo bem o porquê.
Três quarteirões depois estava na porta do escritório. Atravessando o caminho do pátio do edifício em forma de U em que trabalhava abriu a porta e olhou a cadeira vazia do vigia que cuidava da porta e da freqüência dos empregados.
Nunca aquele homem viu o vigia, nunca aquele homem viu o colega de trabalho, nunca viu seu chefe, nunca aquele homem pontual e eficiente verá alguém em toda a sua existência nesse mundo.
2 comentários:
Demorei, mas comecei a ler enquanto vou anotando o que achei pois o texto é bem grande e não quero me esquecer de nenhum comentário que pensei durante a leitura, então aí vai:
- A descrição apresentada no texto se compõe do necessário, logo não é exagerada, pois nos faz poder observar o que o personagem principal está a fazer;
- Tenho pena do cara por ele viver nessa rotina, até parece minha vida de vez em quando;
- Talvez ele viva assim, pois lê muitos relatórios com desastres e ache que a vida dele é muito boa, então acaba por se acomodar. Ele até que gosta da rotina dele e parece conhecer o que se passa ao seu redor no trajeto da sua casa ao serviço, acho que ele nunca parou para pensar a respeito da própria vida, mas conhece que vive em uma rotina sem graça;
- Queria que ele tivesse morrido atropelado enquanto atravessava a rua como sempre;
- Cadê a garota que ele via no banco da praça?
- Por que ninguém aparecia para trabalhar, exceto ele?
- Desculpe minha ignorância, mas não entendi o último parágrafo do texto! Ou será que não é para entender? Ou foi utilizada uma figura de linguagem?
Gostei do texto, rapaz! E quero respostas, é claro!
Basicamente Willy a idéia do texto é criar um mundo em que o trabalho alienou ele totalmente. Não é um mundo ancorado na realidade.
Esse texto era para ser baseado num mundo Kafkiano e em Kafka as pessoas acordam metamorfosiadas em insetos. Ele não ver ninquem é para pensar em como a rotina e o trabalho pode nos afastar das pessoas. Tudo que você esta lendo é o que eu pensei que aconteceria, sem metaforas, esse é o mundo em que ele vive.
O parque seria o único lugar que ele ainda lembra de algo humano, em que ele sente e quer buscar uma resposta mas quando isso é tirado dele ele perde qualquer contato com a humanidade nele e fora. Basta ver que o texto é narrado em primeira pessoa na parte do parque porque é o momento em que ele tem algum controle sobre sí.
O emprego dele foi escolhido com cuidado pois para alguem que não vê ninquem ele trata de relatórios que descrevem a vida de pessoas, momentos especiais e angústiantes, teoricamente carregados de emoções (será que o emprego não tem algo a ver com o esvaziamento, afinal tudo começou a 9 anos)
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